A CÉLULA ORIGINAL E O GRAVADOR
A transmissão da vida é um facto paradoxal.
Por um lado, sabemos com certeza que o laço que une os pais aos filhos é material, já que o novo ser surgirá do encontro de duas células, o óvulo da mãe e o espermatozóide do pai.
Mas, por outro, sabemos com igual certeza que nenhuma das moléculas, nenhum dos átomos que constituem a célula originária tem a menor possibilidade de ser transmitido, tal qual é, à geração seguinte. Torna-se óbvio, portanto, que o que se transmite não é a matéria dos pais, mas uma determinada modificação desta; ou, mais exactamente, uma forma.
Mesmo sem evocarmos o complexo mecanismo das macromoléculas codificadas que são os vectores da herança, este paradoxo desaparece se observarmos que é comum a todos os processos de reprodução, naturais ou inventados.
Uma estátua, por exemplo, requer um substrato material, de bronze, mármore ou barro. Durante a reprodução, existe em cada instante uma contiguidade de matéria entre a estátua e o molde, ou entre o molde e a réplica. O que se reproduz, porém, não é o material, que pode variar segundo a vontade do fundidor, mas exactamente a forma dada à matéria pelo génio do escultor.
A reprodução dos seres vivos é, certamente, muito mais delicada que a de uma forma inanimada, mas segue o mesmo caminho, como no-lo demonstra um exemplo corrente.
Na fita cassette é possível gravar, por meio de minúsculas modificações de imantação, uma série de sinais que correspondem, por exemplo, à execução de uma sinfonia. Essa fita, colocada num aparelho, reproduzirá a sinfonia, embora nem o gravador nem a fita contenham os instrumentos ou mesmo a partitura.
É de uma maneira semelhante que se reproduz o organismo vivo. A fita de gravação é incrivelmente ténue, pois está representada pela molécula de DNA, cuja pequenez confunde a inteligência. Para fazermos uma ideia, se se reunisse num mesmo ponto o conjunto das moléculas de DNA que especificassem todas e cada uma das qualidades físicas dos seis bilhões de homens que existem neste planeta, essa quantidade de matéria caberia facilmente dentro de um dedal.
A célula original do ser humano é semelhante ao gravador com a fita. Mal o mecanismo se põe em funcionamento, a vida humana desenvolve-se de acordo com o seu próprio programa, e se o nosso organismo é efectivamente um aglomerado de matéria animado por uma natureza humana, isso se deve a esta informação primitiva, e somente a ela. O facto de o ser humano dever desenvolver-se no seio do organismo materno durante os seus nove primeiros meses não modifica em nada este facto.
Para a mais estrita análise biológica, o princípio do ser remonta à fecundação, e toda a existência, desde as primeiras divisões celulares até à morte, não é senão a ampliação do tema originário.
A VERDADEIRA HISTÓRIA DO PEQUENO POLEGAR
A primeira célula que se divide activamente, esse primeiro conglomerado celular em incessante organização, a pequena mórula que vai aninhar-se na parede uterina - será já um ser humano diferente da sua mãe?
Sim. Não somente a sua individualidade genética já está estabelecida, como acabamos de ver, mas este minúsculo embrião, no sexto ou sétimo dia da sua vida, com um tamanho de um milímetro e meio apenas, é já capaz de presidir ao seu próprio destino. É ele, e somente ele, quem por uma mensagem química estimula o funcionamento do corpo amarelo do ovário e suspende o ciclo menstrual da sua mãe. Obriga assim a mãe a protegê-lo; faz já dela o que quer, e continuará a fazê-lo daí por diante.
Quinze dias após a suspensão das regras, quer dizer, na idade real de um mês (já que a fecundação não pode ocorrer senão no 15º dia do ciclo), o ser humano mede quatro milímetros e meio. O seu minúsculo coração palpita já há uma semana, e estão esboçados os seus braços, pés, cabeça e cérebro.
Sessenta dias depois, mede, da cabeça às nádegas, uns três centímetros. Caberia, dobrado, numa casca de noz. No interior de um punho fechado seria invisível, e este punho poderia esmagá-lo, num descuido, sem sequer o perceber.
Mas abri a mão, e vereis que está quase terminado: mãos, pés, cabeça, órgãos, tudo está no seu lugar e só tem que desenvolver-se. Olhai mais de perto, e podereis ler-lhe as linhas da mão e dizer-lhe a sina. E mais de perto ainda, com um microscópio comum, podereis decifrar as suas impressões digitais. Ali está tudo o que é necessário para estabelecer a sua carteira de identidade. O sexo parece ainda mal definido, mas olhai muito de perto a glândula genital: evolui já como um testículo, se é um menino, ou como um ovário, se é uma menina.
O incrível Pequeno Polegar, o homem mais pequeno que o polegar, existe realmente; não o da lenda, mas aquele que foi cada um de nós.
Mas após dois meses funciona já o sistema nervoso? Sim. Se lhe roçarmos o lábio superior com um cabelo, o feto mexe os braços, o corpo e a cabeça com um movimento de fuga.
Aos três meses, se lhe tocarmos o lábio superior, volta a cabeça, pestaneja, franze as sobrancelhas, aperta os punhos e os lábios; depois sorri, abre a boca e consola-se com um trago de líquido amniótico. Às vezes, nada vigorosamente na sua bolsa amniótica e revira-se num segundo!
Aos quatro meses, mexe-se com tanta vivacidade que a mãe sente os seus movimentos. Graças à ausência quase total de gravidade na sua cápsula de cosmonauta, dá numerosas voltas, actos que demorará anos a realizar de novo ao ar livre.
Aos cinco meses, agarra fortemente o minúsculo bastonete que se lhe põe na mão e começa a chupar o polegar esperando a libertação. É verdade que a maior parte das crianças nasce aos nove meses. Mas está já perfeitamente desenvolvida aos cinco.
A cada dia a ciência nos descobre um pouco mais acerca desta maravilha da existência oculta, deste mundo formigante de vida dos homens minúsculos, mais encantador ainda que o dos contos de fadas. Pois os contos foram inventados com base nesta história verdadeira, e se as aventuras do Pequeno Polegar encantaram sempre a infância, é porque todas as crianças, e todos os adultos em que elas se converteram, foram um dia um Pequeno Polegar no seio de sua mãe.
QUANDO ESTÁ TERMINADO O HOMEM?
Resta ver a qualidade mais especificamente humana, aquela que distingue o homem de todos os animais, a inteligência. Quando aparece? Aos seis dias, aos seis meses, aos seis anos ou mais tarde?
Responder com uma só palavra não teria sentido algum; mas podemos, sim, distinguir as etapas do órgão da inteligência, que é acessível à observação.
O cérebro está no seu lugar passados dois meses, mas serão necessários os nove meses completos para que se constituam totalmente os seus dez milhões de células. Na criança que nasce, está então acabado o cérebro? Não. As inúmeras conexões que unem cada célula, por milhares de contactos, a todas as outras, não se estabelecerão totalmente senão aos seis ou sete anos de idade - o que corresponde à idade da razão.
E esta complicada teia de circuitos não poderá desenvolver a sua plena potência senão quando o seu mecanismo químico e eléctrico estiver suficientemente rodado, isto é, aos quinze ou dezasseis anos, idade da plenitude da inteligência abstracta. Isto é tão certo que, passada essa idade, os especialistas em psicometria começam a preocupar-se com os estudantes, já que o inevitável envelhecimento começa aos vinte.
E que dizer das inexplicáveis modificações que, em cada dia, o próprio exercício do pensamento necessariamente acarreta? Quantas destas minúsculas rectificações químicas ou anatómicas nesta imensa rede pensante são necessárias para definir finalmente o carácter, a experiência, ou o prémio de consolação que nos outorga o tempo passado? Quanto tempo é necessário para fazer um homem?
Napoleão dizia que são precisos vinte anos. Um filósofo diria: pelo menos uma vida inteira... e depois a eternidade, acrescenta o cristão, unindo-se desta forma ao tempo do biólogo.
Através do longo rodeio de uma paciente observação, o médico volta a descobrir uma verdade evidente que a linguagem comum reconheceu sempre: o homem nunca está terminado.
Terminado o Pequeno Polegar que se faz criança de peito? Terminado o escolar que se faz adulto? E o próprio adulto estará terminado, quando persiste ainda no seu próprio devir? Dizer que um homem está "terminado" não é a condenação mais grave? Quando recebe o golpe de graça, não se diz que o "acabaram"?
Só se pode julgar aquilo que já se realizou, com base nas provas produzidas; e o julgamento conduz à sanção: recompensa ou castigo, conforme o exija a
justiça. Mas quem pode arrogar-se o direito de julgar a própria inocência?
Condenar um feto pelo futuro, é deixar de ver que o homem está já aí, e que só lhe falta acordar. No coma profundo ou sob anestesia geral, o acidentado não pensa; está inerte e insensível. Por que motivo, durante esta suspensão de toda a actividade mental, a sua vida é sagrada? Porque esperamos o seu despertar.
Pretender que o sono da existência obscura no seio da mãe não é o sono de um homem é um erro de método. Pois se todos os raciocínios não podem comover, se toda a biologia moderna parece insuficiente, se até se rejeitassem átomos e moléculas, e se mesmo tudo isso não pudesse convencer-nos, um só facto o poderia. Basta que esperemos algum tempo.
Isso que tomais por uma mórula informe dir-vos-á um dia o que era, convertendo-se, como vós mesmos, num homem.
E a experiência é fiel. Nada de parecido aconteceria se tivéssemos predito um acontecimento semelhante a propósito de uma célula de um tumor ou mesmo de um óvulo de chimpanzé. [...]
Artigo publicado sob este título em Laissez-les vivre, Éd. Pierre Lethielleux, Paris, 1975, págs. 17-29.
Os homens são a coisa mais fantástica que há à face da terra. Mas, por vezes, são umas autênticas mulas porque metem argolada e depois disso, metem argolada outra vez. O grande mal do homem não está na falta de inteligência, está na falta de vontade que se deixa seduzir por essa coisinha doce e melosa, como um pudim. E quando assim é, o homem torna-se naquilo pelo qual se deixa seduzir- um pudim que qualquer colher esquarteja e leva à boca até desaparecer. Perceberam?
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