Retomando um projecto já apresentado em legislaturas anteriores, foi agora apresentado um projecto de lei, pelos deputados do Bloco de Esquerda, que consagra o chamado divórcio unilateral. De acordo com este projecto, o divórcio passará a depender apenas da vontade expressa de qualquer um dos cônjuges, mesmo que o outro a tal se oponha, mesmo que tenha sido o requerente a violar os seus deveres conjugais e independentemente de qualquer período de separação efectiva. O projecto vai na linha da recente alteração legislativa espanhola que consagrou a figura que veio a ser popularmente designada como divórcio expresso. Para a lei espanhola, o divórcio pode ser requerido por qualquer dos cônjuges depois de decorrido o prazo de apenas três meses após a celebração do casamento.
Os proponentes já afirmaram que se trata «da mais importante proposta de modernização do direito da família desde 1975». Talvez seja de lhe dar razão quanto à relevância da proposta. Só que não se trata de qualquer progresso. Será, antes, o culminar de uma progressiva descaracterização do próprio casamento e do próprio direito da família.
A alteração legislativa espanhola veio acompanhada da redefinição do casamento como união que deixa de supor a dualidade sexual. Uma e outra subvertem e descaracterizam o casamento na sua essência. Com o divórcio unilateral, perde qualquer alcance o casamento enquanto compromisso e enquanto vínculo. O casamento passará a ser, talvez, o mais instável e precário dos contratos, mais do que um contrato de trabalho ou de arrendamento. Se, a qualquer momento, qualquer dos cônjuges pode desvincular-se independentemente do motivo, pode perguntar-se qual é, afinal, a diferença entre estar casado e não estar. A mesmo tempo que se vão estendendo os direitos das uniões de facto (hoje a equiparação destas ao casamento, no plano dos direitos, é quase total, apesar de haver ainda, até agora, uma evidente diferença no plano dos deveres, inexistentes para quem não está vinculado pelos laços conjugais), por outra via também se vão esbatendo as diferenças entre a união de facto e o casamento. É o enfraquecimento progressivo dos deveres conjugais. Com o divórcio unilateral, qualquer dos cônjuges pode a qualquer momento deixar de os cumprir. Daqui à abolição do próprio casamento, à sua irrelevância jurídica, o passo é muito pequeno.
O divórcio começou por ser encarado como uma sanção contra o cônjuge que violou gravemente os seus deveres conjugais (foi assim em Portugal até 1977). Depois, passou a corresponder também à verificação de uma situação já irremediável, porque são ambos os cônjuges a requerê-lo, ou porque o tempo de separação de facto revela a prática irreversibilidade da situação (é assim o regime actualmente vigente entre nós). Com o divórcio unilateral, aquilo que começou por ser uma sanção contra quem viola os deveres conjugais acaba por ser um verdadeiro prémio para o infractor.
Sempre se considerou um progresso civilizacional, reflexo da influência cultural do cristianismo, a abolição da figura do repúdio, que permitia ao marido a desvinculação imotivada dos seus compromissos conjugais. Com o divórcio unilateral, pode dizer-se que renasce das cinzas tal figura. Dir-se-á que se trata, agora, de um direito de qualquer dos cônjuges, e já não apenas do marido. Mas, di-lo a experiência e também vários estudos, é, na maior parte dos casos, a mulher a sofrer as consequências nefastas (no plano económico, psicológico e afectivo) da ausência de vínculos e do abandono conjugal. Nas famílias monoparentais, o progenitor ausente é sempre o pai. Nunca houve tantas mulheres sós e pobres…
Políticos habitualmente sensíveis à necessidade de contrariar as consequências do individualismo no campo das relações económicas, com o que ele implica de sacrifício dos mais fracos e da coesão social, propõem agora a consagração do individualismo mais extremo no âmbito da família, do núcleo social mais estruturante e fundamental.
Quer-se “agilizar” e facilitar o divórcio como se não estivesse ele já suficientemente difundido, ou fosse essa difusão socialmente irrelevante, ou até benéfica. Mas o divórcio já está “suficientemente” difundido, entre nós como noutros países onde chega a verificar-se uma proporção de um divórcio para cada dois casamentos (proporção de que estamos a aproximar-nos). As consequências socialmente nocivas dessa difusão também são evidentes, apesar de, muitas vezes, se pretender fechar os olhos a essa evidência, porque, acima de tudo, não se quer pôr em causa essa “conquista” da liberdade individual que será o divórcio. Às vezes, parece que se pretende convencer-nos de que é salutar o crescimento e educação de uma criança ou de um jovem sem a presença contínua do seu pai e da sua mãe, e que é socialmente irrelevante que tal se verifique numa proporção de crianças e jovens que se aproxima da maioria.
Também se diz que «mais vale um bom divórcio do que um mau casamento». Mas quase nunca se diz que um “mau casamento” não é uma fatalidade (como não é uma fatalidade que de dois casamentos um termine em divórcio), que muitas das dificuldades de um casamento podem ser ultrapassadas num esforço de abertura ao outro, de harmonização de diferenças e de perdão recíproco.
É verdade que não é a Lei, por si só, que destrói ou fortalece a família. Tal depende, sobretudo, de factores sociais e, sobretudo, culturais e de educação. Mas a Lei não deixa de ter o seu papel. Além do mais, porque ela própria contém sempre uma mensagem cultural. Não pode desligar-se a difusão do divórcio em Portugal da sua consagração legal em relação à maioria dos casamentos (os casamentos católicos) a partir de 1975. Afirmava-se, então, que não podiam ignorar-se as situações dos casamentos fracassados, que eram, então, apesar de tudo, uma pequena minoria. A partir daí, o divórcio passou a “gerar divórcio”, porque passou a ser maior a ligeireza com que se contrai o casamento e passou a ser menor o incentivo a superar as dificuldades do casamento. Aquele que era o drama de uma pequena minoria, generalizou-se de forma exponencial (não só por causa da Lei, como é óbvio, mas também por causa da Lei)
Parece que hoje se pretende ir ainda mais longe, se quer criar uma sociedade de indivíduos isolados e sem quaisquer vínculos. Mas será isso, sequer, possível? Será possível, por exemplo, contrariar o suicídio demográfico da Europa, a que temos assistido impassivelmente e para o qual começamos agora a estar alertados, quando se recusam quaisquer compromissos e quaisquer empenhos que vão para além do imediato?
Os proponentes já afirmaram que se trata «da mais importante proposta de modernização do direito da família desde 1975». Talvez seja de lhe dar razão quanto à relevância da proposta. Só que não se trata de qualquer progresso. Será, antes, o culminar de uma progressiva descaracterização do próprio casamento e do próprio direito da família.
A alteração legislativa espanhola veio acompanhada da redefinição do casamento como união que deixa de supor a dualidade sexual. Uma e outra subvertem e descaracterizam o casamento na sua essência. Com o divórcio unilateral, perde qualquer alcance o casamento enquanto compromisso e enquanto vínculo. O casamento passará a ser, talvez, o mais instável e precário dos contratos, mais do que um contrato de trabalho ou de arrendamento. Se, a qualquer momento, qualquer dos cônjuges pode desvincular-se independentemente do motivo, pode perguntar-se qual é, afinal, a diferença entre estar casado e não estar. A mesmo tempo que se vão estendendo os direitos das uniões de facto (hoje a equiparação destas ao casamento, no plano dos direitos, é quase total, apesar de haver ainda, até agora, uma evidente diferença no plano dos deveres, inexistentes para quem não está vinculado pelos laços conjugais), por outra via também se vão esbatendo as diferenças entre a união de facto e o casamento. É o enfraquecimento progressivo dos deveres conjugais. Com o divórcio unilateral, qualquer dos cônjuges pode a qualquer momento deixar de os cumprir. Daqui à abolição do próprio casamento, à sua irrelevância jurídica, o passo é muito pequeno.
O divórcio começou por ser encarado como uma sanção contra o cônjuge que violou gravemente os seus deveres conjugais (foi assim em Portugal até 1977). Depois, passou a corresponder também à verificação de uma situação já irremediável, porque são ambos os cônjuges a requerê-lo, ou porque o tempo de separação de facto revela a prática irreversibilidade da situação (é assim o regime actualmente vigente entre nós). Com o divórcio unilateral, aquilo que começou por ser uma sanção contra quem viola os deveres conjugais acaba por ser um verdadeiro prémio para o infractor.
Sempre se considerou um progresso civilizacional, reflexo da influência cultural do cristianismo, a abolição da figura do repúdio, que permitia ao marido a desvinculação imotivada dos seus compromissos conjugais. Com o divórcio unilateral, pode dizer-se que renasce das cinzas tal figura. Dir-se-á que se trata, agora, de um direito de qualquer dos cônjuges, e já não apenas do marido. Mas, di-lo a experiência e também vários estudos, é, na maior parte dos casos, a mulher a sofrer as consequências nefastas (no plano económico, psicológico e afectivo) da ausência de vínculos e do abandono conjugal. Nas famílias monoparentais, o progenitor ausente é sempre o pai. Nunca houve tantas mulheres sós e pobres…
Políticos habitualmente sensíveis à necessidade de contrariar as consequências do individualismo no campo das relações económicas, com o que ele implica de sacrifício dos mais fracos e da coesão social, propõem agora a consagração do individualismo mais extremo no âmbito da família, do núcleo social mais estruturante e fundamental.
Quer-se “agilizar” e facilitar o divórcio como se não estivesse ele já suficientemente difundido, ou fosse essa difusão socialmente irrelevante, ou até benéfica. Mas o divórcio já está “suficientemente” difundido, entre nós como noutros países onde chega a verificar-se uma proporção de um divórcio para cada dois casamentos (proporção de que estamos a aproximar-nos). As consequências socialmente nocivas dessa difusão também são evidentes, apesar de, muitas vezes, se pretender fechar os olhos a essa evidência, porque, acima de tudo, não se quer pôr em causa essa “conquista” da liberdade individual que será o divórcio. Às vezes, parece que se pretende convencer-nos de que é salutar o crescimento e educação de uma criança ou de um jovem sem a presença contínua do seu pai e da sua mãe, e que é socialmente irrelevante que tal se verifique numa proporção de crianças e jovens que se aproxima da maioria.
Também se diz que «mais vale um bom divórcio do que um mau casamento». Mas quase nunca se diz que um “mau casamento” não é uma fatalidade (como não é uma fatalidade que de dois casamentos um termine em divórcio), que muitas das dificuldades de um casamento podem ser ultrapassadas num esforço de abertura ao outro, de harmonização de diferenças e de perdão recíproco.
É verdade que não é a Lei, por si só, que destrói ou fortalece a família. Tal depende, sobretudo, de factores sociais e, sobretudo, culturais e de educação. Mas a Lei não deixa de ter o seu papel. Além do mais, porque ela própria contém sempre uma mensagem cultural. Não pode desligar-se a difusão do divórcio em Portugal da sua consagração legal em relação à maioria dos casamentos (os casamentos católicos) a partir de 1975. Afirmava-se, então, que não podiam ignorar-se as situações dos casamentos fracassados, que eram, então, apesar de tudo, uma pequena minoria. A partir daí, o divórcio passou a “gerar divórcio”, porque passou a ser maior a ligeireza com que se contrai o casamento e passou a ser menor o incentivo a superar as dificuldades do casamento. Aquele que era o drama de uma pequena minoria, generalizou-se de forma exponencial (não só por causa da Lei, como é óbvio, mas também por causa da Lei)
Parece que hoje se pretende ir ainda mais longe, se quer criar uma sociedade de indivíduos isolados e sem quaisquer vínculos. Mas será isso, sequer, possível? Será possível, por exemplo, contrariar o suicídio demográfico da Europa, a que temos assistido impassivelmente e para o qual começamos agora a estar alertados, quando se recusam quaisquer compromissos e quaisquer empenhos que vão para além do imediato?
Pedro Vaz Patto
Juiz de Direito
4 comentários:
Devo dizer que, em termos práticos, alguns pontos do projecto do Bloco de Esquerda têm alguma pertinência, em particular, a questão do prazo de 3 anos para a invocação da separação de facto como fundamento para o divórcio litigioso ao qual há que acrescentar o tempo de espera em tribunal que isso, quase sempre, implica, em termos de decretamento do divórcio. Profissionalmente, confronto-me com essa situação, em casos de pessoas que, durante esses 3 anos, acabam por ter que arranjar contas bancárias paralelas e organizar outros esquemas para poderem evitar que o outro cônjuge possa se habilitar a ficar com metade das coisas já após a separação de facto estar consumada.
Porém, não aceito que, mais uma vez, tal como aconteceu com o aborto, os argumentos de ordem pragmática prevaleçam sobre argumentos de ordem ontológica e Jurídica (com "J" grande, não com o "j" medíocre e relativista defendido por um Tribunal Constitucional desacreditado, nos seus acórdãos nestas matérias).
Corremos o risco MUITO SÉRIO de pôr de lado os fundamentos, a utopia e os ideias da Democracia atrás e subordinados aos critérios pragmáticos do "sentido prático".
E assim, chegam-se a soluções do género:
Há aborto clandestino? Então não se combatam as causas, legalize-se e pague-se o aborto com dinheiros públicos;
Há tribunais entupidos? Então não se combatam as causas, fomentando a conciliação e aumentado os meios, penalize-se antes com custas judiciais exorbitantes os que a eles recorrem de forma a desincentivar o recurso à via judicial.
Etc, etc.
Os divórcios litigiosos duram eternidades nos tribunais? Então basta que um dos cônjuges queira que o casamento acaba..
Como disse o Presidente do Conselho Distrital de Lisboa da OA, Dr. Raposo Subtil, ultimamente, cada vez mais, está-se a tentar conter a procura, estragulando a oferta.
A mentalidade é "como não resolvemos o problema ou o resolver o problema custa dinheiro, então façamos batota e contornemos a questão, facilitando e esquecendo as responsabilidades do Estado, expressas no capítulo dos "Direitos, Liberdades e Garantias" da Constituição que, por sua vez, é suposto ser o depósito comunitário dos valores para o qual a sociedade deve caminhar.
Não me lembro de ver na Constituição a consagração do oportunismo, facilitismo e pragmatismo como critérios de actuação do nosso Estado.
Estamos, pois, claramente a caminhar (se é que já lá não estamos) na degenerescência da Democracia a que Aristóteles, na "República" chamava de "Demagogia". O gerir o Estado segundo critérios populistas, pragmáticos e utilitaristas.
Posto isto, devo dizer que, apesar do que escrevi no 1º parágrafo deste post, concordo com a manutenção da lei, tal como está, e com os 3 anos de duração da "separação de facto" como condição para o divórcio litigioso, não só pela questão da ponderação, mas sobretudo como penalização de uma situação de incumprimento que, de acordo com o projecto do BE, iria beneficiar o infractor.
Na perspectiva psicológica, vale a pena ler também, um excelente artigo em http://www.pailegal.net/mediation.asp?rvTextoId=1130619101, na qual se defende que o "desamor não deve ser causa de divórcio".
Veja-se ainda, em termos estatísticos esta noticia em
http://www.correiomanha.pt/noticia.asp?id=242695&idselect=9&idCanal=9&p=200
400 divorcios al dia en la pobre España
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